Pessoa com deficiência, não superherói!

Sou surda oralizada, meu caro. Não a Mulher Maravilha!

Esses dias, li algumas postagens do Jairo (Marques, jornalista da Folha de São Paulo, autor do blog Assim Como Você) que me fizeram refletir que, ultimamente, a sociedade anda vendo as pessoas com deficiência como seres iluminados.
Gente que porque superou (na real, se adaptou, porque superar seria se “curar”, não?) uma deficiência física, sensorial ou cognitiva, de repente, perdeu o status de ser humano, pra se tornar alguém iluminado, blindado, a prova de chuva de meteoros. Viramos superheróis, semideuses, como se tivéssemos atingidos todos o samadhi (copiando a explicação da wikipedia:  controle completo das funções da consciência, que resulta em vários graus de aquisição interna da verdade) tal qual os mestres hindus ou zen budistas.
Parece que o povo não percebe essa projeção está, na verdade, nos negando o direito de continuarmos sendo humanos. Humanos no sentido de poder nos estressar com probleminhas mundanos. Só porque alguém sobreviveu a um acidente de carro, a pessoa nunca mais pode reclamar de ônibus lotado. Ou porque alguém “superou o trauma” de perder um sentido sensorial, tem obrigação de ser um poço de compreensão com as cretinices alheias. Magina se um surdo oralizado poderia se aborrecer com o fideputa que usa a deficiência dele pra se dar bem de alguma forma?
Se antes éramos tratados como inválidos, agora somos tratados como seres angelicais, sem qualquer vínculo com os problemas e as fraquezas humanas. A gente não pode reclamar de nada, se estressar com nada, tem que perdoar todas as fraquezas e falta de caráter do outros. No máximo, a gente pode reclamar de falta de acessibilidade. Mas só isso…
É um tal de divulgar histórias de superação de forma que nos tornamos exemplos.
Outro dia, conversava com alguém e falei “eu não tenho nenhuma pretensão de ser exemplo de nada”. Ela arregalou os olhos e perguntou “e você faz o DNO para o que?”. Respondi “Para ser parceira de quem passa por situações similares e quer companhia, quer conversar, quer compartilhar os receios e as conquistas. Posso mostrar que dá pra ser feliz independente de qualquer coisa. Mas não de forma exemplar, ninguém precisa me olhar como espelho, apenas como uma mão amiga…”. Simplesmente porque acho impossível, como disse Tom Jobim, ser feliz sozinho. Todo mundo precisa de companhia. Eu precisei e continuo precisando. Quer saber o número de vezes que levei bronca, ouvi dicas e conselhos do Raul e da Anahi, meus mestres no sentido de lidar com a deficiência auditiva?
Não é porque perdi a audição e consegui lidar com isso que deixei de ser humana. Eu me estresso com coisinhas ínfimas do dia a dia. Fico de mau humor por bobagem. Falam que sou esforçada porque aprendi outro idioma usando só a leitura labial, mas sou preguiçosa para caramba e passo o dia de pijama quando posso. Levo de boa a ignorância alheia com o grupo dos surdos oralizados a maior parte do tempo, mas meu sangue ferve quando alguém me enche o saco quando digo que não estou afim de fazer algo.

Acredite, nenhuma pessoa com deficiência se torna, obrigatoriamente, um mestre zen, que mora no topo de uma montanha, complemente alheio aos problemas cotidianos.

Eu erro, eu falho, eu tropeço, eu recomeço do zero e eu chuto o pau da barraca diante dos desafios  do dia a dia, que  não tem nenhuma relação com a surdez. Porque ter deficiência não me promoveu a outra categoria de criatura nem a outra espécie interplanetária, continuo sendo uma pessoa, e tendo que pagar contas, e tendo que trabalhar, e tendo que enfrentar trânsito, e tendo problemas familiares, e tendo vontade de mandar certas pessoas tomarem no… porque sim, eu posso até perdoar muita coisa, mas não sofro de amnésia e, muitas vezes, guardo sim rancor, mesmo sabendo que isso só faz mal a mim. É o meu direito como ser humano!
Falo isso, porque ando pelas tampas com essa exigência da sociedade de que “exemplo de superação” tem que ser iluminados, abnegados e exemplos de mentalidade zen. Não roubem o nosso direito de continuar sendo tão humanos quanto qualquer pessoa!!
Só, e enfatizo, somente SÓ quando a sociedade parar de olhar as pessoas com deficiência de cima (como inválidos) ou no pedestal (como heróis) é que haverá respeito de verdade.Porque a gente respeita MESMO é quem a gente olha do mesmo nível. Quem a gente considera igual a nós. Antes disso, é um respeito falso, que vem recheado de paradigmas e preconceitos e não tem nada a ver com igualdade, com equiparação de direitos e com respeito puro e simples. E é só isso, somente isso, que todas as pessoas com deficiência querem: o direito digno de existir.

Beijinhos sonoros,
Lak

20 Resultados

  1. Bruna disse:

    Ai Lak, como foi a passagem por POA? Eu estava no hospital (a esclerose quis dar o ar de sua graça), por isso não fui no CTG te dar um abraço e tomar um chima contigo.
    Sobre o assunto, rende tanto, mas tanto, que fiz uma dissertação e pretendo seguir uma tese sobre o endeusamento da pessoa com deficiência. Se quiser conferir, já tá online: http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=4035
    😉 Bjs

    • Avatar photo laklobato disse:

      Bru, eu volto a POA e te aviso, não se preocupe.
      Lamento que você tenha ficado dodoi. Espero que não tenha sido nada sério….
      Vou dar uma olhada na sua tese, mas ja te parabenizo pela coragem de abordar, acadêmicamente esse tema!!
      Beijos, querida.

  2. camila disse:

    Isso é o que se pode chamar de um texto-paulada,brincadeira. Mas essas dicotomias talvez sejam a forma mais perniciosa do preconceito, povo acha que aceita a diferença quando na verdade só consegue lidar com a idealização delas.

  3. Soramires disse:

    Olha só a coincidência de pensamentos…eu pensava nisso mesmo mas com o sinal MAIS trocado por MENOS. Brinquei com um grupos de surdos, dizendo que na foto estavam tão bonitinhos que até pareciam normais. Meu humor sarcástico…Houve tempo em que algum defeito de fabricação ou mesmo adquirido poderia ser visto como estigma, marca do castigo divino ou sinal manifesto de maldade. Vi vilões cinematográficos mancando, arrastando perninhas, em cadeira de rodas…tramando vinganças malígnas. E isso me lembra as teorias forenses de que havia gente com “cara e tipo” de degenerados maldosos…Lombroso teve até discípulos brasileiros…aqueles que exibiram as cabeças cortadas dos cangaceiros NUM MUSEU!
    Agora a reviravolta ideológica santifica a pessoa que é “portadora de deficiência” a pessoa carrega a deficiência numa mala com rodinhas ou numa mochila?
    Eu odeio o termo superação tão adorado por jornalistas…
    Muito bom você escrever sobre isso…sua surdinha nada santa, felizmente! 😈 😉

  4. Bruno Sequeira disse:

    Estava com saudades desses seus textos!!!! Impossível expressar de melhor forma….
    Bjs
    Bruno

    • Avatar photo laklobato disse:

      Se eu te contasse o que aconteceu, você ficaria chocado. Então, melhor só ler a minha reação e pensar que a gente batalha pra mudar essa visão!
      Beijos

  5. MAQ disse:

    http://www.bengalalegal.comA acessibilidade para mim está um pouco prejudicada, Lak, espero que chegue para você e que eu tenha preenchido o formulário nos lugares certos.

    Todos nós, independente da deficiência que tenhamos, acabamos por ser heróis ou vítimas para todos. Mesmo que sejamos pobres de espírito, de realizações, que sejamos pessoas pequenas, só o fato de termos uma deficiência e estarmos vivos com ela faz de nós seres diferentes e diferenciados. Já escutei coisas no ônibus ou metrô, do tipo… você é muito forte, se eu fosse você eu me matava! (risos). Puxa, que incentivo, heim! (risos). Certa vez eu respondi… “Não sei como pessoas como a senhora estão vivas ainda…!”

    Quanto à broncas recebidas de amigos e de não amigos… eu as recebo pouco com relação à cegueira, mas tenho uma personalidade um pouco, digamos… (estou tentando me qualificar aqui, mas minha personalidade não está deixando!). Bem, recebo algumas críticas por aí. Mas quero te dizer uma coisa… as broncas da Anahi, pimenta, não são previlégio para ninguém! (risos). Quem já não as recebeu? Adoro Anahi e, saiba de algo que conto para todo mundo… em visita à minha casa, ensinei Anahi a cantar… e isso antes do implante! “É” do Gonzaguinha, só o estribilho… mas o mais engraçado e interessante é que eu sou o cara mais desafinado do planeta e meu filho não entendia como algo daquele gênero poderia estar acontecendo! (risos).

    Entre superherói e vítima prefiro ser humano, simplesmente humano, com todas as deficiências inerentes à isso. Também acho que algumas pessoas, com deficiência ou não, jamais conseguiriam ser pessoas comuns. Outras, podem ter qualquer deficiência ou característica fora dos padrões, que sempre serão pessoas comuns, sempre encaixadas em algum horóscopo de jornal.

    Abraços parabenizantes do MAQ.

    • Avatar photo laklobato disse:

      MAQ, vou ver como resolver isso dos formulários, para ficarem mais acessíveis pra vocês, valeu o toque.
      Essa de ‘se eu fosse você eu me matava’, sempre respondo ‘Então, finge que é e se mata, oras’. Tenho língua afiadissima!!
      Pois bem, concordo. O que define as pessoas é o que elas são, não as condições delas. Beijos

  6. Ari Vieira disse:

    Lak, você expressou o pensamento de inúmeras pessoas com deficiência, como eu; tenho deficiência e cansei dessa história de superação, santo e etc. Parabéns!!

  7. Gabi Antunes disse:

    Lak eu achava que era um erro eu não gostar de ser exemplo pra ninguém, que eu odeio quando a bronca comigo é maior em relação às pessoas quando erro, eu fico extremamente irritada com isso.

    O pior de tudo, eu trato com antipatia pessoas que me tratam como herói, antes eu me sentia mais hj não me sinto graças a troca de experiências com vcs, odeio que tudo gire em torno da minha deficiência, eu me adaptei a ela e pronto, mania de povo de dar um toque a mais às coisas que faço só porque tenho deficiência,,,é muito muito chato! 😯 👿

  8. Lak querida, que texto maravilhoso, fantásticos, contundente, forte, claro, objetivo, simples e muito necessário nos dias de hoje. Parabéns! Leia também o meu texto “Nem herói ou coitadinho”: http://leandramigottocerteza.blogspot.com.br/2012/06/nem-heroi-ou-coitadinho.html

  9. Parabéns pelo texto ele pode trazer muitas PCDs para a realidade, somos seres humanos dotados de sentimentos como todas as pessoas, coitado daqueles que pensam serem Super Heróis, estão enganando a si próprio e o pior de tudo prejudicando a grande maioria dos cidadãos e cidadãs que tem alguma deficiência e não consegue fazer o que essas pessoas “dizem fazer”.

    Tem uns engraçadinhos PCDs que dão entrevistas as rádios e televisões como se fossem melhores do que as pessoas que não tem deficiência, nós temos as nossas limitações, mas temos nossas qualidades também, Ou seja, somos iguais a qualquer pessoa, mesmo elas não tendo nenhuma deficiência elas também são cheias de limitações.
    Ninguém é igual a ninguém, cada Ser Humano é único e tem suas vontades e pensamentos, temos que respeitar as suas idéias, mas não precisamos concordar ou pactuar com elas.

    Quanto a reclamar das coisas que estão erradas é um direito de todos tendo deficiência ou não, eu particularmente reclamo muito e vou à busca de solução para os problemas da nossa sociedade em geral.
    Não podemos deixar de cobrar que as Leis sejam cumpridas, essa é uma obrigação de TODOS com ou sem deficiência, Quem não gosta de política é governado por aqueles que gostam, as pessoas devem entender que as decisões políticas afetam diretamente na vida de TODOS.

    É como você disse no seu texto somos pagadores de impostos e temos o direito de reclamar ou ficar chateados, afinal somos humanos e só queremos viver e conviver bem com tudo e com todos.

    Seu texto retrata bem que somos humanos como todas as pessoas, Meus Parabéns.

    Valdir Timóteo

  10. Greize disse:

    Gostei muito, sou quieta no meu canto, meu temperamento, mas falo muito com quem tenho intimidade.

    Depois da perda de audição ,mutos acham que,virei “santa”, só se for do pau oco, pq nesse mundo não existe nenhum santo.Fico bem qdo faço o bem, mas sou falível demais.

    É o que eu sempre digo, caráter não esta na deficiência.Tem mta gente mau caráter ai, com deficiência ou não.
    Somos apenas humanos.
    P.S:tb adoro ficar de pijama, mó preguiçosa no frio..hehehe.
    Ah, o Roni entrou em contato comigo e Rosseli, vamos tentar algo aqui, sim tentar pq não tenho super poder.kkkk
    Bjosss 😛

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