A voz do professor

Decidi fazer um curso de aperfeiçoamento profissional. Escolhi um curso na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM, eu já trabalhei lá) de design. Porque atualmente trabalho com isso e achei que me faria bem dar uma lapidada no meu talento (hihihi)

O ônibus que passa perto do meu trabalho passa longe da ESPM, mas como saí cedo, decidi caminhar.

Enquanto caminhava, dei-me conta que eram as mesmas ruas onde cresci. Onde também me vi surda numa bela manhã de segunda-feira, em fevereiro de 1987.

Caminhei pelas ruas pensando nas voltas que a vida dá. Passei pela padaria onde eu comprava meus quitutes de criança. Pela banca de jornal (fechada, claro) onde comprei milhares de revistas em quadrinhos logo que ensurdeci (foi o passatempo que encontrei para compensar a ausência de som). Passei em frente a casa onde meus pais trabalharam durante alguns anos…

Caminhei por aquelas calçadas onde brinquei com barulho e em silêncio. Onde conheci meu primeiro amor (se pá, ele ainda mora na mesma casa, mas dai não interessa saber, né? haha). Onde sonhei pela primeira vez com meu futuro. Onde temi pela primeira vez um futuro incerto, num lugar onde pessoas com deficiências só tem incertezas.

Quase 20 anos se passaram desde que me mudei de lá, inclusive.

E voltava a caminhar por aquelas ruas, bem diferente da menina que saiu de lá.

Agora, eu ouvia bem e com os dois ouvidos. Tinha uma história de vida bem bonita para contar. Tinha dois trabalhos que amo (o meu trabalho aqui com marketing interno de uma empresa e esse que faço pela vida a fora, de divulgar o implante coclear). Tenho um casamento feliz. Milhares de amigos. Alguns por quem eu daria o meu coração todinho, inclusive. Tudo aquilo que, aparentemente, a sociedade acha que nenhuma pessoa com deficiência jamais teria. E que, em algum momento da nossa vida, nos avisam que não vamos conseguir. E nos ridicularizam se tentarmos. Mas, nada disso teve importância para mim, porque por mais que me dissessem o contrário, eu nunca deixei de acreditar que teria uma vida plena. E, enquanto caminhava por aquelas ruas, degustava a felicidade de estar certa.

Cheguei no curso e, pela primeira vez em 26 anos (excluindo as minhas aulas de idioma, porque elas não contam, já que a professora é quase como se fosse minha mãe e sempre deu um jeito de entrar na minha cabeça, mesmo quando a ausência de audição não permitia), ouvi a voz do professor encher a sala, minhas orelhas e minha cabeça. Eventualmente, ouvia também a voz dos outros alunos.

Sabe, primeiro, eu não sabia direito como deveria agir. Quando o professor pediu para a gente se apresentar, meu coração disparou, como disparou todas as  vezes todos esses anos. Medo de falar e não ser entendida. Mas, nos segundos que antecederam minha fala, eu pensei “poxa, mas já dei até uma entrevista de rádio, já dei palestra, porque estou com medo de me apresentar para um grupo de 12 pessoas?”. E nessa hora, meu coração se acalmou e pude falar com calma.

Ouvi as horas de explicação do professor com gosto. As vezes, as lágrimas ameaçavam cair, porque ele não tinha ideia do milagre que eu estava vivendo e, sem querer, falava umas coisas bonitas, tipo explicar o que são as artes puras ou o que é uma obra de arte.

Pude ouví-lo claramente corrigir o exercício que me passou.

E tive que rir quando ele me perguntou porque eu não estava fazendo o exercício passado e respondi “trocando a pilha do meu aparelho” e ele parou a aula para que eu não me atrasasse em relação aos demais.

A vida deu uma volta absurda, eu sei. E sinceramente, só posso agradecer por esse dia chegar. Não estou curada da surdez e nem deixei de ser deficiente auditiva. Mas, agora, eu ouço e ouço bem. Graças ao implante coclear.

E quem vive um milagre, sinceramente, não tem tempo para se questionar como. É simplesmente uma dádiva…

Beijinhos sonoros,

Lak

2 Resultados

  1. Aline Torres disse:

    Olá,
    Alguém pode me indicar aonde encontro o fone de ouvido Music Link citado nessa matéria:
    https://desculpenaoouvi.com.br/index.php/2012/10/24/fone-especial-para-usuarios-de-proteses-e-implantes-auditivos/
    Tentei no link do ebay, mais não encontrei. 😳
    Obrigada a todos.

  2. Greize disse:

    Engraçado, estou fazendo o caminho de volta, estou de mudança da casa, do bairro onde nasci e cresci, estou andando por ele, e lembrando de tudo que vivi, os sons de tudo, e agora passando com baixo som demais.Estou deixando o bairro que me marcou de sons , a casa que cresci com muita barulheira.
    Quanto ao professor escola, quando fiz um curso pensei como agir agora sem ouvir, sempre sentei atrás , agora tenho que sentar na frente , e adaptando…
    Se o IC estiver no meu futuro, quero , ô se quero.Mas é um ciclo que se fecha, agradeço por ter tido um infância super feliz e , mesmo hoje sem sons estou redescobrindo a vida de novo.Fico feliz por vc, estar redescobrindo isso também.
    Beijinhos sonoros de AASI.rsrs 😉

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