Síndrome de Usher: A História de Ana Lucia

Como já contei algumas vezes, o DNO nasceu quando eu estava me recuperando de um trauma. Ter acordado praticamente cega, um belo dia de manhã, sem nenhuma explicação precisa, assim como acordei surda.

Mas, graças aos deuses, essa cegueira foi passageira. Causada por uma inflamação na retina, sem nenhuma causa provável e que foi totalmente tratável e sem sequelas a longo prazo.

Porém, confesso que por causa disso, acabei interessando-me um pouco pelo assunto da surdocegueira, uma vez que me vi diante dessa possibilidade por algum tempo e acabei descobrindo algumas síndromes que causam essa condição. Uma delas, foi a síndrome de usher, que ficou bem famosa recentemente num vídeo de ativação divulgado por uma italiana que ouvia pela primeira vez e se debulhava em lágrimas.

Hoje, trago para vocês um relato de uma pessoa que convive com a síndrome, para explicar um pouco mais sobre usher e falar sobre as adaptações necessárias para se ter uma vida plena e contar como tem sido sua experiência de vida.

ana1“Olá Lak!
Fiquei contente em ter a oportunidade em escrever em seu blog! Eu sempre acompanhei seus artigos! Eu também li seu livro “Desculpe, eu
não ouvi”, e posso dizer que amei!
Mesmo para quem não é usuário de implante coclear, você cativa com o seu jeito de escrever e sentir!
Para mim, é uma honra estar contando minha história aqui.
Sei que é um pouco diferente da maioria que publica neste blog, mas sinto que é importante divulgar!

Nasci em São Paulo, sou filha de pais primos (de 2º grau), tenho mais 2 irmãos e eu sou do meio. Nós tínhamos uma vida muito modesta,
morávamos em uma casa de 2 cômodos.
Logo no começo, meus pais perceberam que eu não escutava direito e minha mãe procurou ajuda de vários especialistas. Eu tinha 4 anos quando comecei a falar. Como foi as minhas primeiras palavras e os primeiros sons que escutei, é um mistério para mim, eu não lembro…
Quando chegou a minha idade escolar, os médicos disseram para minha mãe em me deixar em escola especial, devido as minhas dificuldades de ouvir e falar. Na época tive cerca de 40% de perda auditiva em ambos os ouvidos e era considerada perda moderadamente severa. Devo agradecer minha mãe por ter optado em deixar estudar em escola normal, foi um horizonte que abriu para mim.
Apesar de todas dificuldades consegui acompanhar os estudos. Na época, orientaram minha mãe a experimentar um aparelho auditivo para usar no meu dia-a-dia. O aparelho era uma espécie de rádio que é pendurado na roupa e tinha um fone. Era simplesmente muito visível!
Para quem não sabe, o aparelho lembra muito o “walk man”… Mas não era um aparelho muito potente, lembro de uma menina na escola que tinha este aparelho e mesmo assim não escutava nada.
Meus pais também não tinham condições em comprar este aparelho, mas eu quando percebia que o aparelho não servia para aquela menina do “walk man”, eu rejeitei o plano de usar. Embora eu ter conseguido acompanhar os estudos, posso dizer que a minha época escolar foi uma das mais difíceis para mim: sofria de bullying em todos os sentidos, até mesmo de professores. Eu sempre sentei nas primeiras carteiras na frente e isto me fazia sentir diferente de outras crianças consideradas “normais”. Não me convidavam a participar de conversas e nem de brincadeiras. No entanto, passei com êxito os meus estudos.
Na minha infância tinha um fator que me marcou muito: eu tinha medo da escuridão. Estava passando por uma transição de problemas visuais, mas foi um processo gradativo.
Os anos passaram e eu continuei a escutar sem aparelho. Aos poucos percebi que a minha vista ficava embaçada e via algumas manchas escuras. Logo fui ao oftalmologista e ele me receitou óculos para minha miopia e astigmatismo. Mas o meu problema persistiu: tinha dificuldades em enxergar a noite e era (e ainda sou) desastrada. Esbarrava nas pessoas, nas coisas… não imaginava que estava iniciando o meu problema de
retinose pigmentar.
Assim que entrei na puberdade percebi a necessidade de usar aparelhos auditivos, mas eu não tinha condições de comprar. Comecei a trabalhar
com 15 anos de idade e passei a estudar de noite. Nesta fase, percebi com mais intensidade os meus problemas visuais. As minhas dificuldades em enxergar, desta vez, não era somente a noite, mas também durante o dia.  Ganhava muitas risadas por ser desastrada.
Neste período, eu também engajei em um grupo de jovens na Igreja onde freqüentava. Isso me ajudou muito na minha formação e a ser a pessoa que sou hoje. Acredito que Deus me orientou neste tempo para ser uma pessoa forte.
Estava com 19 anos quando decidi usar aparelhos auditivos. Percebi que estava perdendo momentos preciosos da minha vida sem escutar e era
necessário para conviver com todo mundo. Eu tinha que acompanhar as conversas, eu tinha que escutar alguma matéria importante na escola, enfim escutar já não era algo para deixar para depois, era algo que precisava!
Como já disse, minha vida era modesta e tive que fazer empréstimo onde eu trabalhava e praticamente só recebia para pagar condução. Obtive pela primeira vez o meu aparelho retroauricular analógico da marca Siemens e apesar de o som recebido ser um pouco “grotesco”, “mecânico”,
“um rádio”, o esforço compensou: fiquei maravilhada ao ouvir sons que nunca tinha ouvido, mesmo que o som não era estéreo, o que era coisas simples para os outros, para mim era muito especial: o rugido da porta, a água escorrendo, o vento que chocalhava a janela e até mesmo conversas paralelas me agradava, tudo era muito novo e confesso que me arrependi em não ter feito isto muito antes!
Somente os mais conhecidos sabiam que estava usando aparelhos, eu tinha longos cabelos que “tampavam” os aparelhos. Isto foi uma decisão minha em não deixar transparecer os aparelhos, e isto já causou muito espanto entre as pessoas que não sabiam da minha condição de “surda”. Os aparelhos, com certeza me ajudaram muito!
Consegui terminar meus estudos fundamentais e estava prestes a entrar em uma faculdade. Estudei Serviço Social no FMU. Apesar de não exercer a profissão, foi uma experiência incrível! Como parte do currículo, tive que fazer estágio, e um deles foi na entidade ADEFAV, na qual agradeço muito por ter me influenciado na vida. É uma entidade que procura adaptar o aluno surdo e cego de baixo poder aquisitivo, então tinha um ideal muito bonito. Foi quando minha supervisora definiu a palavra “retinose pigmentar” em suas reuniões, e eu logo me vi na mesma situação…
Foi quando comecei procurar ativamente vários oftalmologistas, mas nenhum fornecia informação, apenas diziam que eu tinha miopia e astigmatismo. Estava desistindo, quando finalmente encontrei uma oftalmo que sabendo dos meus problemas auditivos, disse que eu era portadora de Síndrome de Usher.
Sabendo da minha falta de informação, a médica explicou-me: A pessoa que tem Síndrome de Usher é surdo, de nascimento ou adquirida e desenvolve mais tarde uma doença nos olhos chamada Retinose Pigmentar: doença degenerativa, progressiva, hereditária, que afeta as células da retina.
Poderia definir a Retinose como um “túnel”: conseguimos enxergar apenas a visão central, há grande perda de visão lateral. Em alguns casos, a perda total da visão é rápida, em outros estaciona, como é o meu caso, por enquanto.
O diagnóstico me deixou triste, eu, surda oralizada e ainda por cima ter problemas visuais que pode levar a cegueira?
Depois disto, procurei informar mais sobre este assunto. É uma doença rara, em média afeta 3% a 6 % da população surda, e por isto, é desconhecida até entre médicos. Já me aconteceu em passar em oftamologistas em que eu não citei o problema da retinose e eles não detectaram
no exame…
Quanto a audição, adaptei perfeitamente aos aparelhos, e querendo ou não, eu tive várias trocas, porque aparelhos não duram para sempre. Usei o intraauricular mas logo retornei pelo retroauricular, na qual adaptei melhor, e desta vez o modelo digital, BTE-Liv da GnResound, um aparelho que tem sons cristalinos e o outro digital, PCi também da Resound, um pouco mais antigo e que poderia ser “melhorado” em seus ajustes e também nos “preços”. Lembro que na época, um aparelho deste, dava para comprar um “carro” usado, era absurdamente
caro! Outro detalhe que muita gente pensa é que o aparelho de audição resolve tudo, escuta tudo, está muito enganado… Eu, por exemplo tenho dificuldades em escutar certas pronúncias e nem sempre são audíveis para mim, mesmo usando aparelho! Tudo é uma questão de adaptação!
No entanto, continuei seguindo em frente. Conclui minha faculdade e apesar de não exercer a profissão, trabalho há anos como diagramadora
em uma grande empresa de comunicação.
Hoje, aos 48 anos de idade, sou solteira, moro sozinha mas tenho minha independência financeira, tenho meu próprio apartamento e posso
dizer que sou feliz.
Mesmo com os problemas de Síndrome de Usher, eu não desisti. A minha retinose (que não tem cura) está estabilizada e continuo usando meus aparelhos.
Ter Síndrome de Usher é um desafio para mim. Saber que a gente não tem somente “uma” deficiência mas ter “duas” deficiências é um desafio diário, um exercício de muita paciência e dedicação.
Muita gente deve 
saber que cego tem dificuldades em fazer certas coisas como andar sozinho, mas ele é capaz disto. Uma pessoa com retinose também tem esta dificuldades, embora ele enxerga, mas enxerga mal, sofre preconceito com isto por não ser um “completo” deficiente. A mesma situação aplica a pessoa surda, e por mais que seja oralizada, algumas pessoas acham que não temos senso crítico…
Isto é estranho, mas é assim na realidade. Ser uma pessoa deficiente não impede de viver a vida. Apesar de algumas pessoas quando descobrem a sua deficiência, passam te dar tratamento diferente, logo considero estas pessoas como “deficientes sociais” e infelizmente, na maioria dos casos
que isto acontece são nas áreas sociais como nas escolas e locais de trabalho.
Aos poucos, a realidade brasileira está se adaptando a pessoa deficiente na área social como as leis das cotas e a acessibilidade em todos os locais públicos. Mas estas garantias ainda está longe de ser perfeita, falta muita coisa a ser feita. Precisa ter mais médicos especializados com formação de qualidade e precisamos ter recursos para obter próteses. Isto é um desafio do governo. Mas a sociedade também faz parte disto.
Por tudo isto, posso te dizer que sou uma pessoa feliz! A vida é bela!
Obrigada Lak por me conceder este espaço para contar minha história e também foi bom escrever e esclarecer sobre Síndrome de Usher! Quem quiser, pode me seguir no Facebook e na minha página de Síndrome de Usher Brasil.

Ana também mandou o link de um vídeo, para quem quiser ter uma idéia de como é a visão tubular característica:

Beijinhos sonoros,

Lak

7 Resultados

  1. soramires disse:

    Lak muito bom você abrir o espaço para que possamos conhecer a síndrome de Usher, relatada pela Ana Lucia. São tantas as causas de deficiências, que nem mesmo os médicos conhecem. Parabéns à Ana Lúcia pela batalha constante e obrigada pela informação. Sempre é bom saber mais para se for necessário ajudar mais pessoas.
    Abraços às duas.

  2. Sonia disse:

    Tive a sorte de conhecer e passar os 4 anos de faculdade com a Ana! pessoa maravilhosa, linda por dentro e por fora! Fizemos muitos trabalhos juntas, inclusive o TCC (sobre ADEFAV), e com louvor! Te amo munha amiga e torço muito por você!
    Beijo enorme!

  3. martinha disse:

    muito bom esse relato!! Lak, otima ideia de ter colocado esse relato. já ouvi falar essa síndrome de Usher mas nunca em primeira pessoa! Parabéns à Ana Lucia para continuar a ser uma grande guerreira pela vida que ama! abraços

  4. ivanilda vasconcelos disse:

    gostaria de saber mais sobre a síndrome, e preciso de algum material que orienta como trabalhar com pessoas com esta síndrome, pois tenho 3 pessoas que chegaram para atendimento e eu não conhecia, desde já agradeço.

  5. Gi disse:

    Adorei a história de vida vencedora da Ana! É uma guerreira! Bjs

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