Bibi Ferreira Canta e Conta Piaf – e as aventuras de uma implanta no teatro

Há cerca de umas 5 semanas, minha fono Lilian Khun comentou que havia uma peça de teatro da atriz Bibi Ferreira cantando músicas de Edith Piaf.

Tudo porque, ao passar exercícios de canto para treinar nos dias sem consulta, escolhi uma música da Piaf “Non, je ne regrette rien”.  Escolhida por vários motivos: a música é linda, a letra é forte, amo francês e idolatro Piaf, porque ela, como eu, ficou cega e voltou a enxergar. Claro que a vida dela foi muito mais desgraçada que a minha e ela teve muito mais sucesso que eu jamais terei. Então, Piaf é minha musa em diversos sentidos.

Comprei o ingresso logo depois, mas para uma data futura, porque eu queria a primeira fila.

Edu não quis ir – ele não é tão fã assim da Piaf – então convidei minha mãe, que compartilha a idolatria.

Contei nos dedos o dia para a peça chegar. Porque, como vocês devem imaginar, teatro é algo de difícil acesso a surdos (salvo peças com recursos de acessibilidade, o que, infelizmente, ainda é algo raro). E também, teatro é a minha paixão de infância! Eu adorava ir ao teatro (nem sei quantas vezes fui assistir “As 7 chaves mágicas”) quando ainda era ouvinte. Aliás, tentei algumas vezes pós-surdez, mas nunca era uma experiência válida e, no fim, desisti e passei a recusar todas as oportunidades. Uma vida desperdiçada!!

Após fazer o segundo IC, quando finalmente recuperei a capacidade de compreender o que ouço, sabia que logo mais viria a chance de voltar a viver essa paixão! Só queria que fosse uma estreia triunfal, digna de um reencontro de 25 anos de ausência…

E por por isso que escolhi “Bibi Ferreira canta e conta Piaf”, porque Bibi é uma deusa do teatro, uma diva que vale uma espera de 1/4 de século!

Enquanto subia as escadas rolantes (o teatro Frei Caneca fica no sétimo andar do shopping com o mesmo nome) já sentia que a emoção ameaçava dar as caras. Mas consegui segurar…

Entramos no teatro e minha mãe, que não sabia que sentaríamos na primeira fila, me perguntou “Não tinha um lugar mais no meio da platéia?”. Respondi “É a primeira vez nessa vida (de cyborg) que vou ao teatro. Sentaria no palco, se pudesse.”. Ela riu e disse “É, dá pra perceber.”

Assim que  a cortina levantou, deparei-me com uma orquestra. Piano de cauda, violinos, contrabaixo, oboé, etc etc etc. Quando o regente entrou e o som dos instrumentos encheu a sala, tive a sensação que ia explodir de tanta emoção e, da maneira que o corpo encontra para extravasar essa emoção que não cabe, as lágrimas saltaram com força dos meus olhos. Foi impossível contê-las.

Chorei quando vi a Bibi vindo em direção ao microfone – essa temporada comemora 30 anos de sucesso dessa peça – e quando ela soltou a voz pela primeira vez. E pelos 60 minutos seguintes. Quando o mestre de cerimônia citou  que “Piaf era aquela menina que perdeu a visão aos 8 anos”, nem consegui ouvir o resto, porque comecei a soluçar… Tão alto que a moça sentada ao meu lado perguntou se eu estaria passando mal!

Terminada a peça, comentei com minha mãe que queria abraçar a estrela deste espetáculo. Ela, que melhor que ninguém compreendeu o que eu queria dizer, foi na direção do contra-regra e explicou que eu tinha perdido a audição aos 10 anos e recuperado recentemente, depois de 25 anos de surdez e era a primeira vez que eu ia ao teatro e queria muito abraçar a Bibi. Ele respondeu “Como a Bibi Ferreira está muito gripada, ela avisou que não receberia ninguém, mas é um caso especial, vou ver com ela e já volto para falar com vocês.”.

Uns quinze minutos depois, ele voltou sorridente e disse que ela nos atenderia assim que estivesse deixando o teatro. Não no camarim, mas no próprio palco!

Ficamos uma boa meia hora sentadas no teatro, esperando pela saída da estrela. Nesse meio tempo, outro funcionário do teatro veio falar conosco para saber porque estávamos esperando. Minha mãe explicou e um senhor sentado atrás de nós nos ofereceu ingresso para a peça seguinte “Os homens querem casar e as mulheres querem sexo”. Ficamos sem entender nada, mas aceitamos, porque a noite estava mágica demais para simplesmente ir embora…

Bibi voltou ao palco digna de uma verdadeira estrela. De casaco longo e óculos escuros, recebeu um outro fã que pediu para tirar fotos, com uma carinha de cansada.

Com a estrela Bibi Ferreira

Quando chegou minha vez, eu tremia tanto, meu coração batia tão rápido que nem sabia o que dizer. Repeti, gaguejando, a minha história e ela respondeu, com os olhos marejados (essa foi a surpresa máxima da noite) “Eu sei, minha florzinha, eu sei!” E beijou meu rosto todo. Me deu um abraço forte e aceitou tirar fotos comigo! Agradeci pelo presente daquela noite e disse que voltava ano que vem, para ouví-la cantar Frank Sinatra. Ela respondeu “Minha florzinha, toda a felicidade do mundo para você!”, com uma candura que, naquela hora, vinha com uma força de humanidade que é um talento de poucos!

Quando descíamos do palco, o tal senhor que nos ofereceu ingresso estava com uma moça. Ela comentou que a Bibi era maravilhosa. Respondi que sim. E ela endossou “Uma pena que ela esteja tão gripada”. Minha mãe responde “Estamos todos gripados, coisas de cariocas em São Paulo”. Ela respondeu pra mim “é, dá para perceber pela sua voz” (hahaha meu sotaque de surda, agora virou voz de gente gripada, fase transitória)… Aí minha mãe explicou de novo minha história e….

Descobrimos que os dois eram donos do teatro, que também ficaram encantados com a minha história. A moça me levou para ver o camarim da Bibi e me fez 800 perguntas sobre como foi ficar tanto tempo sem ir ao teatro, como foi poder ir ao teatro, se pude ouvir bem, o que senti, e mais um monte de dúvidas sobre o IC…

Ficamos para a peça seguinte – que era praticamente um monólogo – que pude assistir com extrema facilidade, graças ao IC. Lembrei de todas as vezes que fui ao teatro e não entendi o diálogo e voltei pra casa entediada e sem entender nada. Ri das piadas – sim, entender piadas também depende de uma audição boa – participei das brincadeiras que o Carlos Simões fazia com a platéia e me senti parte daquele momento, de verdade.

Hoje, acordei, depois de uma das noites mais mágicas da minha vida e fiz aquele “check” mental (mais alguém tem essa mania?) “Foi sonho? Não! Que bom!”

Pensei no quanto foi bom ir ao teatro e chegar em casa exausta, mas não conseguir dormir porque a felicidade ainda fervilhava nas veias.

A questão não é fazer propaganda do implante, apenas constatar que com ele, o mundo ficou maior. Mais rico! Mais fácil de ser percorrido, porque me permite, com muito menos receio, chegar no outro e dizer o que eu quero, preciso, almejo! E ouví-lo…

Já tinha me dado conta disso antes mesmo de ir ao teatro. Fui tomar café com o Edu e ele foi achar uma mesa enquanto eu pegava o café, explicava quais os acompanhamentos, que queria água e ouvir os 575 “dá licença” ditos nas minhas costas, pelo povo que queria se aproximar do balcão.

Medo de não entender, de deixar escapar alguma fala e de não ser entendida são fronteiras, são barreiras, são limites que diminuem o tamanho do mundo.

O mundo, agora, é imenso e eu estou de malas prontas para exporá-lo! IC, meu caro, obrigada por ser meu companheiro de jornada!

Fica aqui o registro (pra vocês, porque infelizmente não sou tão famosa pra esse texto ir muito longe) do meu agradecimento eterno pela Bibi Ferreira, que ao fim de mais um de seus inúmeros espetáculos e mesmo gripada, teve a humildade de aceitar abraçar alguém que ia ao teatro pela primeira vez (depois de anos de silêncio). E aos donos do teatro Frei Caneca, pela gentileza de me deixarem explorar o camarim, feito uma criança em fase de descobertas e pelo ingresso da peça seguinte. Acabou sendo uma noite infinitamente mágica.

Beijinhos sonoros,

Lak

 

 

 

12 Resultados

  1. Gui Chazan disse:

    Lak, fico muito feliz por tu estares conseguindo aproveitar peças de teatro! E com música ainda, em outra língua. Que progresso! Que continue tudo às mil maravilhas. Bjos 😀

  2. Leandro Kdeira disse:

    Sensacional! 😀

  3. Marli Scheifer Camargo disse:

    Na sexta feira passada também fui assistir a um teatro onde a atriz principal é minha filha. Uma pena que só vi a imagem, pois a música e a voz ainda não foi possível ouvir. Mas estou prestes a fazer o meu implante coclear e a esperança é muito grande de que um dia ainda vou assistir a uma peça dela ouvindo tudo. Fico feliz por você Lak.

  4. Julia disse:

    Olá Lak,
    volto aqui após um tempo para fazer um pedido e vejo mais um lindo momento sendo compartilhado. Deve ter sido imensamente mágico. Por conicidencia, esses dias minha mãe, que é cantora, estudou ópera, me enviou um video da Bibi Ferreira cantando e admirando sua interpretação.
    O pedido: estou trabalhando em uma organização no Rio (estou fazendo o caminho inverso ao seu, saindo de SP para morar na cidade maravilhosa) e como estou no RH, saiu a questão “o que nos impede de contratar pessoas com deficiencia?”. Disse que o que mais falta é informação. E lembrei que você mencionou sua colaboração em um documento de onde trabalha dando algumas dicas. Procurei na internet e encontrei basicamente textos sobre direitos, leis. Mas queria algo que orientasse realmente no sentido de apresentar possibilidades de receber futuros colegas. Você teria como compartilhar esse documento?
    Obrigada e desejo muitos momentos incriveis.
    beijos

  5. Maíra disse:

    Você com o IC é igual a uma menina quando ganha uma barbie pela primeira vez. Se deslumbra!! 🙂

  6. Eliane disse:

    Como testemunha ocular tb me emocionei muito e ainda agora me emociono lendo seu relato. Isso é uma experiência que fica registrada por toda sua vida. E, vou lhe dizer, me surpreendeu o carinho da Bibi ao lhe cobrir de beijinhos, lhe chamar de Florzinha e ter toda a delicadeza que teve, realmente os artistas são uma tribo diferente, claro que nem todos mas, ela além de uma Diva é tb um “ser humano”como poucos. Sem citar Piaf, o espetáculo em si. Como vc mesmo disse: Noite Mágica! que sua vida esteja recheada delas. 😉

  7. Andrea disse:

    Lak,
    Você merece isso e muito mais.
    Obrigada por sempre compartilhar suas emoções que viram nossas, que saem do peito.
    Desde que perdi a audição eu tenho evitado o teatro, os shows, os bares, os restaurantes…e tenho pavor de não escutar ser chamada no médico (todos deveriam ter senha, fico em pânico de não ter ouvido meu santo nome..rs)…eu escuto um pouco, mas acho que esse medo só quem tem sabe…rs
    Aqui em casa, hoje mesmo, meu irmão veio e olhou com a cara mais assustada pra mim falando se não ia atender o telefone (não escuto o danado), falei que não escutava…rsss…
    Dá pra entender, nem ele que convive comigo, compreende.
    Mil beijocas Lak.

  8. Stella Massonetto disse:

    Chorei com o seu relato, um dos mais lindos que já li! Beijo em seu coração.

Participe da conversa! Comente abaixo:

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.