No mar…

Você conhece a poesia Mar Português, de Fernando Pessoa? Provavelmente conhece, especialmente por causa de uma frase famosa:

“Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.”

Mas a poesia inteira é linda e explica, com toda a licença poética que Pessoa se permitiu, explicar porquê o mal é salgado (e fazer uma homenagem aos marinheiros que enfrantaram e morreram no mar durante a época da descoberta das Américas) hehehehe Ainda assim, todo mundo lembra da poesia por conta da frase já citada, afinal, realmente tudo vale a pena quando a gente se permite sentir, pensar, sonhar…

A minha paixão não é essa frase – óbvio, eu tenho a mania chata de querer ser diferente do comum. Sou apaixonada pela estrofe seguinte. Enfim, a poesia toda, com destaque à minha parte favorita:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Uma noite, há pouco mais de um ano, passei a madrugada conversando com minha amiga Anahí, estudante de ciências sociais, deficiente auditiva como eu. A gente falava sobre a condição das pessoas com deficiência – ela é militante da luta pró-acessibilidade, pró-inclusão social – e em dado momento, comentei dessa poesia e do quanto eu gostava da frase destacada. Pra mim, essa frase tem um peso absolutamente maior que a frase anterior, que todo mundo gosta. Ela gostou da minha explicação e perguntou se podia guardar de recordação. Falei que sim, que ela poderia usar como quisesse.

Essa semana, estava novamente conversando com ela, quando ela me contou que tinha se formado em Ciências Sociais e que iria apresentar o Trabalho de Conclusão de Curso nos próximo dias (já apresentado) e perguntou se poderia me mandar uma cópia. Falou: “Aquela frase que você gosta é a epígrafe do meu TCC”. Respondi que queria ler sim e imaginei o trabalho dela com essa triunfante abertura de Fernando Pessoa “quem quer passar além do bojador…”. O trabalho dela fala justamente da condição das pessoas com deficiência.

Enfim, recebi o arquivo, abri pra ler porque o assunto em muito me interessa e dei de cara com essa epígrafe (ah, eu admito que chorei na hora):
“Você sabe o que é o bojador, né? As pessoas achavam
que o mundo era plano, mas se seguissem pelo mar até
o horizonte, havia uma queda e ele acabava. Esse limite
do mundo se chamava bojador. Um dia, alguém
atravessou e descobriu que o bojador não existia.
Exatamente o que a gente tenta provar quando mostra
que existe superação pra deficiência. Que existe vida
além do bojador imaginário das pessoas.”
(De Lakshmi Lobato para Anahi, numa noite daquelas
de papo sobre transcender-se à própria deficiência).

Praia de Nice, Riviera Francesa, adaptada aqueles que precisam adrentrar com rodas na praia.

Praia de Nice, Riviera Francesa, adaptada aqueles que precisam adrentrar com rodas na praia. Fonte: acervo pessoal de Lak Lobato (é, tb sou fotógrafa, lembra? hahaha)

 

E você, qual o bojador que você gostaria de atravessar?

Beijinhos,

Lak

14 Resultados

  1. Rogério disse:

    Já “palpitei” mais cedo, mas caiu a conexão antes de enviar. Falei mais ou menos assim:
    Meus bojadores estão classificados em ordem alfabética (vide meu post de hoje), mas isso não é de todo ruim, porque me fizeram perceber uma força que jamais imaginei que tinha. Esta, talvez, seja a essência da vida, ou uma de suas nuances mais saborosas: em não se permitindo apequenar a alma, abre-se a condição de ir além de impossibilidades teóricas, de (pré) conceitos estabelecidos e nunca ceder ao que não acreditamos.
    Minha Eliana é fã do Pessoa há muitos anos, e confesso que conheço pouco do cara, a ponto de já tê-la presenteado com livros repetidos. Mas o pouco que conheço me revela a leveza e a riqueza de sua alma flagrantemente atormentada, porém sempre atual, reveladora e tocante. Um beijo, Lak.

    • Avatar photo laklobato disse:

      Sim, acho que transpassar os bojadores é o que lapida o carater – e convenhamos, parte importante do significado de estar vivo.
      Também nem conheço muito do trabalho de Fernando Pessoa. Esse poema, em especial, minha fonoaudióloga leu pra mim e me explicou nalqum tempo ido de adolescência. Marcou-me à alma e jamais fui capaz de esquecê-lo…
      Beijinho

  2. Bruna disse:

    Simplesmente amei o texto.
    Vou guardar a frase pra mim também, blz?
    Hehe
    Bjs

  3. Thais Frota disse:

    Nossa, que legal isso! Eu não sabia o que é bojador, adorei saber!!
    Posso roubar essa foto?? Você lembra de que é este material que fica na areia??
    🙂 😀

  4. Julia disse:

    Pois eh, viciei e por aqui sempre encontro algo bacana, ve so o q vc faz com as pessoas, rs
    Fernando Pessoa eh fabuloso, sabe traduzir tanta coisa intensa em versos. E eh verdade, eh preciso desafiar, enfrentar para ver que eh possivel ir muito longe e dai descobrir o encanto que nao doia tanto assim!

  5. Juca disse:

    perdoar quem fez pouco caso de seu desejo manifesto de perdoar!

    😐

    (tem alguma receita hindu pra ir além desse bojador, Lak???)

  6. Anahi disse:

    oi lakys,

    esse seu trecho é mesmo de emocionar todos, por isso não tinha como descartá-lo. aliás, tua sensibilidade pra perceber a beleza das pequenas coisas, como “o bojador”, ih, isso é de (e pra) poucos.
    mas o inverso tbém é verdadeiro: te admiro tbém.

    beijão

  7. Não conheço vc, mas virei teu fã! Que belo texto, que bela história! Realmente emociona e mostra sua sensibilidade fora do normal, onde coisas mínimas, mas belas e muito importantes passam desapercebidas ni nosso mundo egoísta que vivemos.
    Parabéns!
    Diego

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