Pequenas conquistas sonoras e grandes mudanças de vida.

Sábado acordei cedo e fui até o bairro da Liberdade.

Eu e meus dois ICs. A vida é diferente quando você tem audição bilateralmente. Ainda que uma audição artificial. Mas não importa, importa somente que você pode ouvir.

A cidade é barulhenta. Admito que acho que esses 20 e tantos anos de silêncio, me faz achar que os barulhos aumentaram muito nesse meio tempo. Muito muito muito mesmo. Não sei se é impressão, dado o meu parâmetro com o silêncio absoluto – quebrado somente pelos sons dos meus pensamentos que, nos últimos anos, davam lugar a sons-quase-imagem. O cérebro acostuma com as opções que tem.

Para chegar na Liberdade, pego ônibus e metrô. E uma coisa que acho engraçada no ônibus é o barulho do bilhete sendo passado pela leitora, seguido do barulho da catraca. Dois apitos e uma roleta. Não sei explicar bem porquê, mas adoro esse barulho. Acho hipnótico. No ônibus sempre tem gente falando alto. Mas as vozes se mesclam ao barulho do trânsito e do próprio ônibus, de maneira que dificilmente consigo compreender o que as pessoas dizem. Mas, quase sempre consigo deduzir o teor da mensagem pela entonação da voz. As pessoas dão uma importância imensa para as palavras em si, mas voz já fala muito sem palavra nenhuma. O tom usado, o volume dela. Tudo serve de pista para denunciar o conteúdo da mensagem. E depois de 25 anos como usuária da leitura labial, que depende inclusive de lógica dedutiva, é engraçado perceber como meu cérebro, automaticamente, fica deduzindo coisas a partir das pistas mais ínfimas que dispõe. E, atualmente, ele anda numa fase ávida por sons e fica, sem que eu mesma sinta qualquer necessidade, tentando “ler os sons” do ambiente tal qual uma máquina processando informações.

No metrô minha atenção se volta para os alertas do trem. Apito de que a porta será fechada. Alto falante avisando qual a próxima estação (o da linha vermelha é muito mais claro que da linha azul!!).

No restaurante, por sua vez, rola uma saturação de sons. É musica ambiente, é gente falando, é prato batendo, é telefone que toca, é criança chorando, é cadeira sendo arrastada. E meu cérebro parece desistir de ouvir nessa hora, porque é informação demais. O próprio IC não dá conta de separar tantos sons. Alguns são filtrados, outros são mesclados entre si e, no fim, a sensação que dá é que é um silêncio barulhento apenas. Muitas vezes, nem ouço o garçom me perguntando as coisas e passo por mau educada. Fazer o que? Já me conformei…

Voltando de lá, enquanto esperava o ônibus no terminal, peguei o celular e mandei SMS pra minha mãe “você está em casa”. Mas passados 10 minutos, ela não respondeu. Peguei o celular novamente, me perguntando se já chegara o momento de ousar de verdade e partir para a ligação via voz. Apesar de já ter conseguido fazer ligações básicas – inclusive meu primeiro telefonema de aniversário para meu pai – ainda sou insegura para falar no telefone. Tenho um medo absurdo de não entender bem o que disseram do lado de lá da linha. Nem tanto por limitação do IC, mas por bloqueio meu. Tenho 25 anos de dependência do córtex visual para entender o que dizem. Usar somente o córtex auditivo é um tanto apavorante, sinto-me insegura.

Mas, é preciso tentar e eu liguei pra ela. “Mãe, você está em casa?”… e ela disse “Eu estou na rua”… Repeti – faço isso para a pessoa confirmar se eu entendi corretamente – “Você está na rua?”. Ela confirmou… Em seguida, falei “É que queria ir para a sua casa. Você demora?” e ela “Não, estou indo para lá daqui 15 minutos.” dessa vez, nem confirmei, só completei “Ok, demoro isso também, para chegar lá. Te encontro lá.”  Ela concordou e nos despedimos.

Parece uma coisa pequena. Uma ligação besta que não dura nem 2 minutos. Que tem um contexto fechado de informação. Mas, sabe? Nada disso importa, porque é infinitamente maior do que pude fazer todos esses 25 anos de deficiência auditiva sem recursos.

Quando saí da cirurgia, escrevi “22 estrelas sonoras brilhantes na minha cóclea”, mas foi apenas por entusiasmo, porque era imprevisível o que estava por vir.

Agora, diante das conquistas, posso dizer com propriedade: essa constelação de 22 estrelas transformaram meu céu de silêncio exterior no mais belo dos céus estrelados. E bem sonoro!

Beijinhos sonoros,

Lak

12 Resultados

  1. Alice disse:

    Que estas 22 estrelas sonoras brilhem para todo o sempre, meu sorriso rasgou ao comprido, Lak, está cada vez mais poética com dois 2 IC’s juntos. Noto diferença até na sua forma de relatar as suas experiências biónicas. Tentador e encorajador! Continua, para me deliciar mesmo aguardando o Bilateral no devido tempo. Parabéns por tremendos PROGRESSOS!

    Beijo sonoro 🙂
    Sun Melody aka Alice

  2. Eliane disse:

    Isso de poder falar com vc ao telefone por 2 minutos que seja numa orientação básica e necessária para a atitude a seguir, é simplesmente o máximo, ‘não tem preço”o restante, vamos resolvendo aos poucos. Benvinda a comunicação telefonica, delícia poder falar com vc by phone! E, claro sempre rola aquela emoção… 😉

  3. Andrea disse:

    LInda…sempre linda Lak.
    Beijos

  4. Denise disse:

    ahhhh Lak…. meus olhos brilham com tuas conquistas…
    Bjos linda!

  5. Roner Dawson disse:

    Estupendo!!! 😀
    Lembrando que as 22 estrelas agora sao 44 estrelas.
    Ou melhor, 45, contando com VOCE!!!
    Parabens e continue assim, compartilhando ativamente com aqueles que tambem buscam estes resultados.
    Abracos!!
    Roner

  6. Magda Vagli Zobra disse:

    Acho muito legal essa sua descoberta de sons e fico muito feliz mesmo não te conhecendo pessoalmente,imagino a sua felicidade poética..em tudo que vc sente e descreve…eu como é mais recente a perda ,ainda sinto falta de falar ao telefone, trabalhava como secretária até o começo do meu casamento então precisa de usar o telefone, e pior é que nem minha mãe ainda entende isso, mas tadinha ela ta meio fora do ar e eu não consigo escuta-lá ao telefone ai sabe o que eu faço coloco no viva voz e meu marido me reproduz o que ela fala…mas faz parte..o meu pai sempre usou AAIS e quando era vivo ele telefonava pras pessoase só ele falava era engraçado pq ele nunca esquentou a cabeça, mas tipo ela dizia assim to indo ai…tchau…rsrs…bjsss
    😉

  7. Oi Lak,

    Uma dica: quando estiver usando a Linha Amarela do Metrô (Butantã – Estação da Luz), em São Paulo, ligue o telecoil de seu processador. Você vai perceber que a voz do alto falante anunciando a próxima estação vai direto para o seu processador! Aconteceu comigo na estação Butantã! (uia!)

  8. Babi disse:

    Cara… Queria te explicar cada uma dessas sensações auditivas, mas estou no trabalho e roubando tempo pra te ler e responder. Mas posso te afirmar que vc está recebendo os sons exatamente como nós ouvintes. É assim mesmo que sentimos e que o cérebro ouvinte trabalha quando tem estímulos demais. Tem até um nome certo pra esse tipo de ruído. No popular, é o famoso “zum-zum-zum” porque parece que todos os sons se abafam e viram um único som ininteligível e característico de locais lotados.
    Fico muuuito feliz em saber que você está nessa etapa de evolução auditiva. Tá ótima. continue confiante e curiosa. É isso mesmo!
    Beijos 😀 😀 😀 😀

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